Por: Luigi Wagner
A Terra-Média, universo criado na década de 30 pelo britânico J. R. R. Tolkien com O Hobbit, se provou uma das fantasias mais populares e rentáveis para a adaptação mainstream desde que popularizou-se na literatura há quase um século. Da monumental adaptação da trilogia O Senhor dos Aneis para o Cinema no início dos anos 2000 por Peter Jackson, até a inspiração para a criação das mais variadas e elaboradas fanfics pelos cantos da internet, o mundo criado por Tolkien só foi ser revitalizado de maneira apropriada nos videogames em 2014, com o aclamado Middle Earth: Shadow of Mordor, pela Monolith Studios.
Contando uma história não-canônica que se passava entre os eventos de O Hobbit e O Senhor dos Aneis, Shadow of Mordor acompanhava Talion (Troy Baker), um guerreiro que parte em uma jornada de vingança pela morte de sua família nas mãos do exército de Sauron (Steve Blum), juntando-se ao célebre elfo Celebrimbor (Alastair Duncan), que também busca se vingar do Senhor das Trevas por motivos pessoais.
Apesar de apresentar uma trama que, pelo menos em tese, nos daria um novo vislumbre ao universo da Terra-Média sob diferentes perspectivas, Shadow of Mordor brilhava, indiscutivelmente, menos por sua história principal e mais pela abordagem narrativa sistêmica que o jogo apresentava com aquele que foi intitulado de Nemesis System.
Utilizando-se de um conjunto de variáveis e sub-sistemas por debaixo dos panos, o sistema Nemesis, em sua essência, permitia o surgimento de forma dinâmica de um conjunto de relações do protagonista Talion (ou o jogador) para com os orcs tão frequentemente vistos como “caras feias repetidas” dentro da mitologia de Tolkien. Criando um senso de rivalidade (ou soberania) interessante para com quaisquer orcs encontrados pelo mundo, SoM acabou compondo uma abordagem narrativa que, apesar de restrita dramaticamente por sua natureza sistêmica, não deixava de ser eficaz em seu objetivo principal: criar um senso de dinamicidade no comportamento das criaturas daquele universo.
Agora, três anos depois, a Monolith nos leva de volta a Mordor com Middle Earth: Shadow of War (aqui traduzido diretamente como Terra-Média: Sombras da Guerra), uma sequência que, para os melhores e piores dos efeitos, traz uma variedade de adições a este experimento do estúdio com o universo de J. R. R. Tolkien.
Depois de forjar um anel de poder que, teoricamente, irá livrar a Terra-Média do reino de Sauron, Talion e Celebrimbor partem em uma jornada que, auxiliada pela misteriosa Larácna(Pollyanna McIntosh, que aqui vive a icônica gigantesca aranha da série O Senhor dos Aneis sob a forma de uma mulher) e outros aliados, levará a uma perigosa disputa de poder por todas as partes envolvidas.
Sendo instigante à primeira instância por se tratar de uma nova história no universo de O Senhor dos Aneis, Middle Earth: Shadow of War não demora para se demonstrar como um experimento narrativo que empalidece tremendamente diante daquelas obras que o inspiram (no caso, em especial a adaptação para o Cinema da trilogia principal por Peter Jackson e desconsiderando os fraquíssimos filmes baseados em O Hobbit que vieram anos mais tarde).
Apresentando um elenco de personagens principais uniformemente aborrecidos, Shadow of War fracassa em nos conectar a quaisquer de suas figuras protagonistas – sendo isto devido ao fato de que estas, em sua grande maioria, não passam de indivíduos unidimensionais que estão ali sempre com um “propósito maior” acima de tudo, sendo este nunca desafiado por quaisquer conflitos internos ou interpessoais daquelas pessoas.
Dessa forma, se tematicamente a história principal de Shadow of War hora ou outra até flerta com discussões interessantes acerca da obsessão por poder, este esforço acaba por sucumbir devido ao fato de que seus personagens nunca saem de espectros pré-determinados: Talion, por exemplo, começa e termina o jogo como o herói inestimável que nunca questiona suas motivações pela cruzada de salvação de Mordor – e se Troy Baker tenta trazer um certo nível de humanidade e fragilidade ao adotar tons de voz mais suaves na sua composição do protagonista, o fraquíssimo roteiro de Tony Elias dificulta arduamente a tarefa do ator para que não caia na criação de um herói tão genérico como Talion prova ser. Do outro lado, temos Celebrimbor, uma figura que não só flerta com a vilania, como simplesmente a encarna em seu comportamento durante a maior parte do tempo – tornando-o a clara parte “má” do protagonista que se divide entre este e Talion no corpo do último – criando uma dualidade que se mantém intacta do início ao fim da história sem qualquer nuance entre ambas as partes para com “o outro lado”.
Mais problemática que a falta de personalidade da história de SoW, porém, é a desastrosa estrutura que encapsula esta.
Dividindo-se em uma estrutura de Atos bizarramente arranjada, o jogo conta com um primeiro ato que serve como uma introdução “básica” às mecânicas e sistemas do jogo e ao conflito principal da história, um segundo que – sendo o mais forte – é composto da exploração apropriada de detalhes e particularidades do sistema Nemesis sob o guia das missões que avançam a trama -, um terceiro ato que, composto literalmente de uma única missão (enquanto os outros contavam com dezenas), dá a impressão de nos preparar para uma batalha grandiosa, apenas para se encerrar alguns minutos depois, após alguns embates nada especiais, e um ato “final” que, depois do já anti-climático Ato 3, obriga o jogador a repetir as mesmas atividades – aqui visando a defesa de cercos já conquistados ao longo da campanha (uma tarefa que requer dezenas de horas de grinding sem a menor recompensa narrativa) – apenas para “recompensar” o jogador com uma cutscene de três minutos que, no melhor dos casos carece de inspiração, e no pior dos casos é desrespeitosa depois de todo o trabalho que o último ato requereu.
Felizmente, a fraca história principal e sua desastrosa estrutura não são suficientes para condenar Shadow of War a uma experiência aborrecida. É na verdade até surpreendente que, apesar de contar com alguns problemas fundamentais, o game consiga se manter como uma obra inegavelmente divertida de se jogar.
Eficaz em inspirar no jogador um senso de poder e progressão contínua ao longo de sua extensa campanha, Shadow of War é um jogo que lhe pune ferrenhamente no início ao lhe colocar para enfrentar orcs, a primeira instância, muito mais poderosos que Talion, apenas para que eventualmente o jogador tenha a chance de se vingar destes e sentir-se como a entidade indisputável de poder naquele mundo dominado por orcs – no processo, então, demonstrando a complexidade e abrangência do sistema Nemesis de forma prática.
A nova versão deste sistema, por sinal, se mostra mais complexa do que nunca – para o melhor ou para o pior. Se depois de passado da casa das dezenas de horas de investimento, é recompensador sentir-se no entendimento de boa parte dos pilares do Nemesis System, é preciso reconhecer que o jogo faz um trabalho, no mínimo, atrapalhado em apresentar suas mecânicas e particularidades sistêmicas para o jogador. Assim, é impossível não sentir-se intimidado pela quantidade absurda de comandos e habilidades que vão sendo introduzidas já nas horas iniciais (e que não cessam mesmo horas adentro da campanha) – com o game apresentando atividades novas antes mesmo que o jogador tenha segurança para lidar com aquelas já estabelecidas.
Dito isso, depois de algumas (boas) horas em Mordor, quando finalmente obtemos um entendimento competente de como podemos manipular aquele mundo e seus orcs, é fácil se sentir compelido em continuar a gastar horas e horas apenas evoluindo seus exércitos e habilidades de dominação de Talion (e apesar de convoluta [como vários aspectos de SoW o são], a vasta árvore de habilidades do protagonista permite a experimentação e o incremento mesmo depois de muito tempo de jogatina). Esta sensação de controle que o jogo inspira também não é para menos: ao permitir a formação de suas tropas de orcs da maneira mais customizada possível, Shadow of War cria um sentimento de antecipação eficiente que sucede a formação destas e antecede as grandes batalhas que envolvem tomar o controle da fortaleza principal de uma determinada região com a ajuda dos orcs recrutados.
Por sinal, é impossível falar do sistema Nemesis sem discutir a forma como este atribui personalidade aos orcs da Terra-Média. Dando personalidade a todos os orcs que entram em um embate substancial com Talion (por exemplo, após matar este alguma vez), o sistema atribui características diversas e particulares a estes – que vão desde nomes próprios como Gruk, O Cantor, Hoglik, O Bêbado ou Narug, O Caçador, por exemplo, até atributos mais peculiares, como habilidades e ou fraquezas especiais, como resistência a flechadas e medo de ataques furtivos, respectivamente (características que podem e devem ser estudadas para uma aproximação mais estratégica e eficaz contra os monstros). A mutabilidade dos orcs naquele mundo também impressiona: é interessante, por exemplo, que depois de conseguir escapar de algum confronto com o jogador no qual tenha sido queimado gravemente por explosões ou flechas inflamadas, ao nos depararmos com tal orc eventualmente, este irá exibir claros sinais de queimadura e, possivelmente até adaptações a ferimentos de fogo. São detalhes pequenos, mas que contribuem para uma percepção orgânica daquele mundo – no processo tornando a grande maioria dos orcs mais chamativos mesmo que os personagens mais importantes da história principal.
No que toca a jogabilidade momento-a-momento, ao contrário dos sistemas intrínsecos já comentados, Shadow of War é facilmente compreensível. Sendo em termos de exploração e percussão do mundo como a maiorias dos jogos de ação/aventura modernos, o game, assim como seu antecessor, exibe claros sinais de influências de outras obras contemporâneas semelhantes, como a série Assassin’s Creed e a franquia Batman: Arkham – com seu divertido sistema de combate sendo basicamente uma versão com espadas daquele sistema de pancadaria visto nos jogos do Homem-Morcego.
Assim, não é uma surpresa que Middle Earth: Shadow of War acabe se mostrando uma obra muito mais competente quando avaliada como um exemplar categórico de um jogo de ação fantasioso, do que quando vista como um experimento com o universo criado por J. R. R. Tolkien.
Para este segundo caso, ao menos sempre teremos as adaptações de Peter Jackson do início do milênio.
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