terça-feira, 16 de maio de 2017

Análise – What Remains of Edith Finch

Por motivos de reconciliação própria, aceitação pessoal ou mesmo conformidade, temos a tendência de nos lembrarmos daqueles que já deixaram este mundo com um expressionismo quase “engradecido” de suas personalidades e lembranças – quase que de forma romântica – embelezando até mesmo as mais trágicas das memórias.
What Remains of Edith Finch, novo trabalho da Giant Sparrow (The Unfinished Swan) conta uma história que, concentrada em uma onda de eventos que não poderiam ser mais funestos, traz consigo também um ar de fantasia que tenta facilitar a lembrança daquele passado de maneira menos abrupta e, assim, menos “real” para aqueles que o vivenciaram.
Nos colocando no papel de Edith (Valerie Rose Lohman), What Remains of Edith Finch acompanha a garota a medida que esta escreve um diário de lembranças sobre a história de sua família enquanto visita a abandonada mansão isolada na qual passou boa parte de sua infância. Ao explorar o (já há muito abandonado) casarão, vamos descobrindo aos poucos o que levou à decadência da família Finch, não demorando muito para ficar claro que aquelas pessoas não pareciam estar muito longe de estarem “amaldiçoadas”, dada a grotesca tragédia característica do fim da vida de cada um daqueles indivíduos.
À medida que exploramos cada cômodo da grande mansão, vamos descobrindo aos poucos sobre cada Finch ao longo de múltiplas gerações e como se deu seu (invariavelmente) trágico fim. Dessa forma, é fascinante perceber como cada cômodo daquela casa acaba funcionando quase que como uma pequena cápsula do tempo para cada pessoa que um dia abrigou, trazendo um ar de personalidade palpável a todos os ambientes ali contidos.
Este tremendo cuidado que é levado na concepção da ambientação de Edith Finch acaba se mostrando o maior de seus méritos. A cozinha desarrumada e com amontoados de livros demonstra a curiosa paixão por histórias pelos membros da família, à medida que os pratos, copos e garrafas de vinho esparramados na sala de jantar indicam uma ocasião de urgência nos últimos momentos vivenciados por alguém naquela casa.  Mas não é apenas no escopo interno da ambientação que o design de produção e a direção de arte de What Remains of Edith Finch se mostram fabulosos: é curioso notar como a própria estrutura externa da casa reflete a natureza de seus habitantes, de forma que o aparente amontoado de “casas sobre casas” reflete adequadamente o amontoado de personalidades daqueles que um dia a habitaram (assim como a cruciante ironia de que, a cada novo andar da casa que subimos, mais a família Finch parece desmoronar em seu passado). Da mesma forma, é brilhante o fato do crescente ar de tragédia da história ser devidamente espelhado na ambientação do jogo: se ao chegarmos inicialmente àquela casa, os ambientes se mostram inundados pela luz do Sol e a impressão emocional que temos é de “inocência”, conforme vamos adentrando o íntimo daquela família e as histórias vão se revelando mais trágicas, os cômodos vão também sendo tomados pela escuridão à medida que a noite chega. Por fim, é interessante notar a decisão criativa da Giant Sparrow de constantemente preencher os ambientes explorados com trechos dos monólogos expressados por Edith ou seus parentes, realçando com eficácia o sentimento de presença irrecuperável que um dia permeou aquele lugar.
O roteiro de Edith Finch, por sinal, se mostra eficiente em tratar da delicadeza dos temas de sua história com reconhecível sensibilidade e sutiliza durante a maior parte do tempo. Infelizmente, no entanto, às vezes este parece subestimar a eficiência dos próprios cenários em contar histórias e ocasionalmente até mesmo a inteligência do próprio jogador, como [e segue um pequeno spoiler], depois de comentar ter cogitado deixar todo aquele passado para trás, mas que decidiu o contar por fazer parte “da sua história também” – deixando suficientemente claro o fato de a garota estar grávida e estar contando aquilo para seu eventual filho –, a protagonista ainda comenta em outro momento ao escalar uma árvore “se eu soubesse que teria escalar tanto assim, não teria vindo pra cá grávida de 22 semanas” – soando assim, desnecessariamente expositivo.
Felizmente, este ocasional excesso de exposição está longe de eclipsar uma obra que claramente percebe a força da interatividade como ferramenta narrativa e a usa como trunfo para o aprimoramento do peso dramático de sua história com surpreendente maestria.
A cada parte da casa referente a um membro da família Finch, temos a oportunidade de explorar um pouco mais de sua história. Porém, se a tendência em jogos do gênero é nos colocar para ler alguns amontoados de escritos, What Remains of Edith Finch nos coloca no papel de cada um dos membros através de pequenas vinhetas que, em estrutura e estilo, não poderiam se mostrar mais diferentes umas das outras. Dessa maneira, através da simpatia por perspectiva (mérito chave proporcionado pela interatividade) e de diferentes mecânicas, experienciamos brevemente um pouco do olhar de cada Finch: ao adotarmos a perspectiva da garotinha Molly, por exemplo, através de sua visão inocente do mundo, temos a oportunidade de controlarmos diferentes animais percorrendo os arredores da mansão, enquanto, ao assumirmos a posição de Sam, enxergamos a visão do mundo através dos olhos de um fotógrafo à medida que este documenta suas viagens de caça com sua filha. Ou ainda na extraordinária história do jovem Lewis que, perdido nos abismos da depressão, vê seu principal escapismo tomar conta de sua vida rotineira em uma sequência na qual duas mecânicas completamente diferentes precisam ser administradas pelo jogador ao passo que uma delas vai tomando conta da tela em uma transição ao mesmo tempo fascinante e infinitamente trágica.
Através desta versatilidade narrativa, What Remains of Edith Finch acaba atingindo sucesso exímio em evocar habilmente todo o peso dramático que sua história requer, despertando um sentimento agridoce ao nos fazer contrastar a beleza da fantasia característica das vinhetas que jogamos, com a imensurável tragédia que repetidamente representam.
“Eu acho que se há um padrão em todas essas histórias, é que nenhum de nós chegou muito longe”, diz Edith em determinado momento, encapsulando a essência melancólica de What Remains of Edith Finch.
Com personagens que acabam cedendo a uma visão entristecida da vida e a um eventual fim justamente devido à dificuldade de lidar com tragédias anteriores, What Remains of Edith Finch demonstra um não tão imaginário ciclo no qual, à medida que aquelas pessoas tentam fechar uma ferida, duas outras mais dolorosas se abrem em outro lugar.
Se você pôde perceber ao longo deste texto, What Remains of Edith Finch está longe de ser a mais enaltecedora das experiências – mas é uma cuja beleza reside justamente na exploração de seus densos temas, demonstrando do que são capazes os games quando estes não se mostram preocupados meramente com o ato de “divertir”.
Em suma, uma obra tremendamente memorável.

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