quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Análise – Hellblade: Senua’s Sacrifice

A capacidade que temos de compreensão quanto à agonia emocional e mental daqueles que mais sofrem nessa esfera do “ser” é sincera somente até certo nível.
A verdadeira angústia emocional experienciada por indivíduos atingidos pela depressão, por distúrbios de bipolaridade ou qualquer outro tipo de patologia mental mais agravado, é difícil (para não dizer impossível) de ser compreendida mesmo por aqueles que são vítimas de tais quadros.
Talvez seja por isso que a Arte – ao menos na esfera mais comum – ainda trate o assunto como certo tabu até hoje. A dificuldade de estabelecer uma conexão de empatia com histórias que lidam com espectros psicológicos às vezes tão distantes daqueles que costumamos habitar em nosso dia-a-dia pode se mostrar um desafio verdadeiramente intimidante para qualquer artista que busque a exploração do tema.
É fascinante então que a Ninja Theory (estúdio responsável pelos subestimados Enslaved: Odyssey to The West DmC: Devil May Cry) decida mergulhar profundamente no tópico na forma de um jogo em seu mais novo trabalho, Hellblade: Senua’s Sacrifice.
Adotando um “novo” modelo de produção, situando-se no meio termo entre uma produção AAA e uma realização independente (chamado pelo próprio time de “AAA independente”), Hellblade é inteiramente desenvolvido e publicado pelo estúdio inglês, livrando seus criadores de quaisquer constrições normalmente resultantes de uma parceria com uma grande publisher. E apesar da escala diminuída do projeto (cerca de apenas 20 pessoas trabalharam em seu desenvolvimento, com um orçamento estimado “bem” abaixo de 10 milhões de dólares), Hellblade certamente mantém os valores de produção de uma obra costumeiramente triple Atambém.
Aproveitando desta liberdade criativa, a Ninja Theory acabou por conceber então uma obra que, possuindo em seu centro uma protagonista profundamente perturbada pela psicose mental, se mostra um estudo sensível de um tema muitas vezes evitado pelo âmbito artístico casual – sendo no caso dos videogames, então, basicamente inexplorado.
Dirigido e escrito por Tameem AntoniadesHellblade acompanha Senua (Melina Juergens), uma guerreira que, sofrendo de tormentos mentais incessantes, embarca em uma jornada pelas florestas e montanhas do mundo nórdico em busca de atingir a sanidade.
Demonstrando sua disposição em tratar do assunto com a devida seriedade logo em seus primeiros minutos (os primeiros nomes a aparecerem na tela durantes os créditos introdutórios do jogo são justamente de indivíduos que serviram como consultores especializados em saúde mental para a concepção da história), Hellblade exala uma atmosfera de constante melancolia e paranoia logo em seus momentos iniciais. Nos introduzindo à protagonista em meio a uma de suas várias crises advindas das incessantes vozes que insistem em gritar em sua cabeça, o jogo nos mergulha no íntimo de Senua e sua progressiva dificuldade em lidar com os transtornos mentais que a afetam durante sua jornada.
Materializando sua aflição naquilo que a garota chama de “Escuridão”, além dos transtornos psicológicos mentais pelo qual passa, Senua é também constantemente torturada pelo luto resultante de uma perda amorosa importante em seu passado. Toda esta agonia emocional pela qual a garota passa ainda é agravada pelo fato de que basicamente todos os seus familiares e conhecidos enxergam sua doença como uma maldição que acabou por “contaminar” sua tribo – uma falácia que – misturada à condição depressiva de Senua – acaba por se tornar uma “verdade” perigosa para esta (e neste sentido, o roteiro faz um trabalho eficientíssimo em relembrar o fato de que, doenças que hoje em dia são reconhecidas e tratadas graças às descobertas da Medicina, no passado eram motivos para condenar mulheres à fogueira por ingenuidades advindas da crença religiosa).
A gradativa queda de Senua aos abismos da depressão acaba por ser um dos aspectos mais fortemente retratados em Hellblade, e os momentos em que a protagonista se vê prestes a afundar na “escuridão” são apresentados sob uma abordagem angustiante, mas imediatamente relacionável se você já passou por tumultos similares. Da mesma forma, o crescente costume que a garota começa a apresentar de entender seu transtorno mental como “sua culpa”, e enxergar isto como a verdade absoluta, seja pelas vozes em sua própria cabeça ou pelas pessoas a sua volta – é retratado também de forma profundamente honesta (e novamente, relacionável) na abordagem narrativa da história. Acertando também ao não reduzir Senua meramente à condição de sua psicose mental, o roteiro faz questão de desenvolver a protagonista de forma complexa e delicada, demonstrando sua personalidade amorosa frente àqueles poucos que não a descartaram por sua “maldição”, ao mesmo tempo em que se mostra frequentemente atormentada pelo medo de decepcionar mesmo aqueles que a torturaram emocionalmente.
Eficiência a parte do roteiro, porém, Hellblade estaria longe de alcançar a proeza narrativa que alcança não fosse o trabalho excepcional feito por Melina Juergens na composição da protagonista (e a atriz é desde já uma das favoritas às grandes premiações no final do ano). Vivendo Senua com toda a sensibilidade e força que o papel requer, Juergens (que por sinal, é uma editora de vídeos na Ninja Theory), dá vida a protagonista com competência absoluta ao explorar nuances de personalidade, ao mesmo tempo em que é obrigada a explorar espectros emocionais completamente opostos em questão de segundos – no processo, concebendo aquela que é facilmente uma das melhores performances do ano de 2017.
Um dos aspectos mais interessantes sobre a abordagem narrativa de Hellblade, no entanto, reside no fato do jogo utilizar de seu design para convencer a aflição mental de Senua através da jogabilidade. Dessa forma, ao invés de apelar para um ritmo que procure agradar as massas (empecilho que produções AAA normalmente precisam passar), a Ninja Theory estabelece uma visão para o game que, acima de tudo, procura estabelecer com maturidade a visão da história de Senua. É difícil, então, mesmo estabelecer um gênero para Hellblade: contando com longas seções de exploração (um walking simulator?), sequências extensas de quebra-cabeças (um puzzler?) e segmentos intensos de combate (ação/aventura?), o game não procura encaixar suas variedades mecânicas com o objetivo principal de simplesmente oferecer variedade – mas na maioria das vezes, com o propósito de salientar sua concepção narrativa.
É admirável então que o jogo consiga sucesso nesta empreitada de forma notável na maior parte do tempo. Desde os quebra-cabeças que, apesar de envolverem uma estrutura similar na maior parte do tempo (normalmente o reconhecimento de algum padrão visual no ambiente), conseguem transmitir com eficiência a sensação de confusão e ciência particular dos objetos a sua volta, como Senua o faz, até as sequências de combate que são capazes de elevar a um estopim quase catártico a sensação de sucesso ou (muitas vezes) fracasso dos esforços da protagonista em enfrentar suas projeções mentais (sendo que o clímax da história é pontuado de maneira fantástica por esta construção), Hellblade não se esquece de se tratar de um videogame, e utiliza deste fator como ferramenta integral para contar sua história com o impacto desejado. E se o jogo às vezes peca por estender um pouco demais suas sequências de combate ou pode frustrar com alguns quebra-cabeças que interferem no ritmo da história, estes são a exceção, sendo na maior parte do tempo espaçados com a devida competência.
Espetacular do ponto de vista técnico, neste departamento Hellblade deixa aparente o porquê de não poder ser visto como apenas “mais um indie qualquer”. Rodando sob a mantra do Unreal Engine 4, o jogo faz aquele que é, honestamente, um dos melhores usos do motor gráfico da Epic Games até hoje, concebendo paisagens e vistas que impressionam a ponto de embasbacar, além de construir com detalhes as florestas e locações características da era viking – o que se deve também, é claro, ao fabuloso trabalho de direção de arte pelos artistas da Ninja Theory. Contando também com um trabalho de design de som absolutamente impecávelHellblade é um jogo que soa extraordinário (e para melhor aproveitamento do jogo, é fortemente recomendado jogá-lo com fones de ouvido com suporte a som 3D ou com um sistema surround de caixas de som com múltiplas saídas – sendo uma saída Dolby Digital 5.1 mais que o suficiente).
Utilizando do som como ferramenta integral do design do jogo, o game faz proveito deste não só para imergir o jogador na confusão mental de Senua (com as vozes “rodando” na cabeça deste em um “raio” de 360°), mas também como artefato mecânico – seja na hora da resolução de quebra-cabeças ou mesmo na hora dos combates – e como a câmera está sempre notavelmente próxima a Senua, nestes cenários, nos resta apenas ouvir as vozes em sua cabeça para manter ciência da localização dos inimigos no espaço – o que é genial. Fechando ainda com uma trilha-sonora formidável, esta está sempre pontuando de maneira sutil, mas significativa, a jornada de Senua – desde os momentos mais intensos aos mais melancólicos (e de novo, o primoroso clímax do jogo é também elevado a um nível de catarse emocional em muito devido ao trabalho musical do momento).
Provando que não é necessário um orçamento colossal ou um time de centenas de pessoas para a concepção de uma obra que impressione do ponto de vista técnico e tenha algo a dizer em termos criativos sem sacrificar seus valores de produção, a Ninja Theory consegue achar em Hellblade um “meio-termo” que, ironicamente, o lança a um status de relevância muito maior que várias outras produções maiores pela indústria.
Adotando ainda uma abordagem repleta de sensibilidade ao contar sua história, Hellblade consegue gerar um sentimento de empatia importantíssimo considerando o tema que envolve esta, tornando a jornada de Senua uma difícil de acompanhar, mas apenas devido ao peso da honestidade que a contém.
Fica claro então que, mesmo passando-se em um contexto fantasioso como a mitologia nórdica, um trabalho de arte é sempre capaz de dizer algo com efetivo impacto, se nas mãos de contadores de histórias talentosos.

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