quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

God of War: Um épico de sutilezas


[O texto a seguir conta com vários SPOILERS a respeito de God of War. Se você não teve a chance de jogar o game ainda, vá consertar este erro e volte depois!]


Originado a partir da poesia e traduzido para outros tipos de expressões artísticas com o passar do tempo, o ‘Épico’ veio a ser caracterizado como um gênero centrado em figuras heroicas, aventuras em larga escala e representações majestosas de histórias atemporais.

Mais que adequado então para encapsular mitologias de povos passados, o gênero naturalmente cimentou a representação das histórias particulares destes sob lentes grandiosas, de forma que – seja dentro da representação mitológica grega, nórdica, celta ou afins – tais fábulas seculares (ou mesmo milenares) ficaram marcadas como contos que representam aquilo de mais grandioso que uma cultura pode ter – não surpreendentemente, sendo costumeiras explicações para a origem de seus respectivos adeptos (com figuras de deuses sempre presentes em suas concepções).

Lançado em 2005, sob a direção de David Jaffe e teto da Santa Monica Studios, God of War utilizava o épico como sua mantra principal de identidade, criando na jornada do espartano Kratos uma história que se estenderia por uma trilogia grandiosa e uma variedade de aventuras paralelas ao longo dos anos. Abraçando a grandiosidade do gênero com uma força inquestionável, God of War (e suas eventuais continuações) serviria, acima de tudo, como um palco para o espetáculo que seria a trajetória de vingança de seu protagonista, à medida que este derrubaria um a um os deuses gregos do Olimpo.

Seguindo esta abordagem a risca, com os anos que se passaram, a franquia, naturalmente, começou a atrair algumas críticas (talvez justificadas) a respeito do “vazio de substância” de seus jogos para além do espetáculo, tendo em seu protagonista a síntese destas. Kratos, afinal, se provava vez após vez um protagonista unidimensional, aborrecido e carente de quaisquer traços que o tornassem minimamente relacionável – tendo seu arco dramático ao longo de quase sete jogos resumido a um amontoado de gritos aos deuses que derrubava pelo caminho.

Assim, depois de uma recepção crítica e comercial relativamente medíocre com God of War: Ascension, em 2013, não foi muito espantoso quando a Santa Monica decidiu tirar a série dos holofotes por um tempo em busca de uma “reinvenção” aprofundada da mesma.

Meia década depois, esta reimaginação da franquia chega na forma do apropriada e simplesmente intitulado God of War, que – apesar de ser uma continuação direta de God of War III (2010) e contar com o mesmo Kratos no papel principal – se mostra quase que como uma subversão do que viemos a entender como God of War na maneira como aborda a construção de seu mundo e de seus personagens, ainda que no processo mantenha intacta toda a grandiosidade do espetáculo e a brutalidade que veio a se tornar icônica na série.

Comandado por Cory Barlog (também responsável pelo segundo jogo da franquia), God of War nos (re)apresenta a um Kratos (Christopher Judge) visivelmente envelhecido enquanto o indivíduo – ao lado de seu filho Atreus (Sunny Sulijic) - organiza os preparos finais da cremação de sua falecida esposa. Detalhe: não estamos mais dentro dos confins da mitologia grega, mas claramente em um mundo regido pela crença nórdica.

Sem se preocupar em mastigar os detalhes de como Kratos foi parar no panteão dos deuses nórdicos, como o protagonista veio a estabelecer uma nova família ali ou mesmo quanto tempo se passou desde o capítulo conclusivo da última trilogia, God of War deixa claro logo em seus primeiros minutos que contará com uma abordagem diferente de seus antecessores para o desenvolvimento de sua narrativa.

Evidenciada logo de cara pelo posicionamento da câmera mais aproximada de seus personagens, esta abordagem não demora para deixar evidente seu principal objetivo: conferir um grau de intimidade e imediatismo maior a jornada que acompanharemos.

Trazendo um olhar dotado de uma sensibilidade inimaginável para um exemplar da série (ou mesmo para jogos do gênero como um todo), o diretor Cory Barlog confere em sua aproximação claramente carregada de experiências pessoais um trabalho de direção que exala a maestria de um artista claramente em controle da história que conta. Assim, num simples gesto de hesitação por parte de Kratos em confortar seu filho Atreus durante uma recordação delicada por parte deste, God of War constrói em seu protagonista uma figura infinitamente mais complexa que quase dez jogos anteriores não conseguiram o fazer.

Desenvolvido com um nível de sutileza que evita explicitar as emoções do protagonista de forma óbvia, o roteiro (escrito a três mãos, por Matt Sophos, Richard Zangrande e o próprio diretor) dificilmente deixa claro para nós jogadores a percepção emocional exata de Kratos frente aos eventos que o protagonista vivencia ao longo da história, relegando à brilhante performance de Christopher Judge várias das nuances que compõem o indivíduo aqui, a medida que, através de trejeitos e pequenos detalhes, o ator constrói um indivíduo que parece estar sempre tentando controlar a fúria inerente de sua persona, ao mesmo tempo em que luta com um amontoado de arrependimentos e procura ser um exemplo para seu filho (e por favor, não cometa o tropeço de jogar o game dublado e assassinar aquela que é possivelmente uma das performances mais notáveis do ano [não, não há trabalho em cabine de dublagem neste mundo que faça jus à captura de performance direta dos atores sob o comando de um diretor em um set de filmagem]).

Dando dicas sutis aqui e ali sobre como a forma que Kratos reage ao mundo e as pessoas a sua volta comenta suas próprias particularidades, God of War cria um retrato de um personagem que, apesar de sentirmos estarmos conhecendo cada vez mais à medida que a trama avança, parece sempre guardar detalhes que nos mantém investidos em suas motivações. Assim, é curiosa, por exemplo, a admiração que o protagonista exibe por sua falecida esposa e como, de certa forma, parece até mesmo se inspirar nesta (afinal, que mulher no mundo seria capaz de moldar aquele Kratos que conhecíamos na trilogia anterior nesta figura que encontramos aqui?).



Acima de tudo, porém, é mesmo a relação desenvolvente entre Kratos e Atreus que se prova o cerne dramático de God of War e a principal força motriz na exploração do personagem. Trazendo uma infinidade de artefatos que, por si só, já seriam suficientes para a criação de conflitos constantes entre o pai e o filho (Atreus, em sua personalidade maravilhada pelo mundo é essencialmente o oposto de Kratos), a relação dos dois indivíduos ainda é pontuada por detalhes que sabemos serem de natureza mais delicada para sua harmonia. Dessa forma (e já avisei, SPOILERS), ao descobrimos que Atreus é um deus, sabemos que aquela informação tem um peso muito maior para Kratos do que seria de se esperar em um contexto similar – afinal, sabemos do histórico do indivíduo com seres desta natureza (um histórico exclusivamente calcado no ódio, importante lembrar). Assim, a dificuldade do protagonista de se relacionar com seu próprio filho acaba ganhando contornos muito mais complexos do que imaginados à primeira instância, contribuindo ainda mais para a percepção de que God of War não está interessado em concepções rasas para sua cuidadosa carpintaria narrativa.

Da mesma maneira, considerando o passado de Kratos e o próprio contexto no qual os personagens estão inseridos, é possível enxergar no protagonista uma possível demonstração até mesmo de medo para com seu próprio filho, afinal, o conceito de “filhos matando os pais” parece ser um tema recorrente na série e na própria mitologia nórdica: não só Kratos matou seu pai (Zeus), como é também interessante notar, por exemplo, a reação do protagonista quando Atreus aponta a “natureza absurda” de um filho matar o próprio pai naquela missão paralela envolvendo um bandido que foi morto pelo filho. Mais sintetizador ainda sobre esta essência inerentemente trágica daquele mundo são os eventos que decorrem ao final do terceiro ato da história, quando Freya (Danielle Bisutti) aceitar ser sacrificada por seu filho, Baldur (Jeremy Davies) – uma atitude que Kratos explica a Atreus ser “compreensível” na posição de um pai.

E se Kratos quer fazer de sua missão tornar Atreus um “deus do bem”, como diz, esta ‘compreensão’ denota quase que uma posição de aceitação do protagonista do risco de um dia ter seu destino selado pelo próprio filho – um desfecho melancólico, mas perfeitamente adequado à jornada que o precedeu.


O mais impressionante de tudo, no entanto, reside no fato de que God of War atinge tamanha eficiência dramática não anulando o personagem de Kratos como o conhecíamos ou ignorando suas experiências passadas, mas o evoluindo justamente por conta destas – uma conquista que, honestamente, soaria impensável há alguns anos.


Apesar de ter no deus da Guerra sua figura protagonista clara, God of War obtém sucesso na construção de um universo uniformemente crível em muito devido ao fato de contar com uma galeria de personagens tridimensionais além do próprio espartano.

Assim, se a priori Atreus pode transparecer ser apenas um ‘artifício’ para desenvolver o personagem de Kratos, o garoto logo ganha contornos próprios, provocando nosso interesse em seus dilemas e preocupações pessoais – seja através da demonstração de suas forças e fraquezas, sua curiosidade acerca do mundo a sua volta ou então sua demonstração de carinho por sua mãe, (de forma mais reservada) seu pai e até mesmo por Freya. Por falar em Freya, é admirável o cuidado que o roteiro tem em desenvolver a mulher com a mesma competência que seus ‘colegas de cena’ (um cuidado que se prova essencial para o clímax da história funcionar, vale apontar), compondo nesta uma figura que, tendo conhecido alguns dos maiores sofrimentos ao longo de sua vida, não hesita em abdicar desta apenas para ser perdoada pelas dores que causou ao próprio filho. Baldur, por sinal, também demonstra ser um indivíduo muitíssimo mais interessante do que poderia ser nas mãos de contadores de histórias menos talentosos, compondo um vilão que parece acumular ‘por herança’ todo o ódio e sofrimento resultante da arrogância devastadora de seu pai, Odin.


Aliás, a figura de Odin é a demonstração clara da imensa habilidade de God of War em nos tornar investidos em seu universo e suas consequências puramente através de sua construção de mundo: sem sequer aparecer durante a história, Odin revela-se uma ameaça onipresente. Mais do que uma força física a ser temida, o “deus da sabedoria” evidencia uma capacidade assustadora de manipulação psicológica (vide os relatos de seu relação abusiva com Freya e o controle que exerce sobre seu filho para jogá-lo contra a própria mãe). No final das contas, em um único jogo, Odin prova ser uma ameaça muito mais estarrecedora do que Zeus, por exemplo, era na trilogia original.

Dessa forma, God of War comprova-se uma obra extremamente bem-sucedida não só em instigar interesse em sua própria versão da mitologia nórdica e como usa esta como pano de fundo para sua história principal, mas também pelas próprias interpretações que toma na maneira de seus personagens causarem impacto naquele mundo (e a revelação de que o nome original de Atreus é Loki é particularmente fascinante no que toca as possíveis implicações que pode ter em uma eventual continuação).



Por fim, além de contribuir para a credibilidade do estabelecimento de seu universo através de inúmeras decisões narrativas acertadas, de um ponto de vista puramente técnico, God of War tem também uma execução magistral. O mais revigorante, no entanto, é perceber que esta engenhosidade técnica está sempre a serviço de enriquecer o jogo narrativamente – e a decisão de Barlog de estruturar o jogo em um único plano-sequência ininterrupto se revela particularmente acertada, dando à jornada de Kratos e Atreus um ar quase ‘documental’ que reforça ainda mais a intimidade de sua natureza.

Amarrando sua história com uma conclusão que acaba por servir quase que como uma ‘rima inversa’ ao desfecho dos jogos anteriores, God of War se encerra em uma nota quase irônica ao sentimento de esperança que parece inspirar. Assim, se na trilogia anterior Kratos partia em jornadas embasadas em propósitos egoístas (como sua missão de vingança pessoal) e acabava gerando consequências positivas para o mundo (deu liberdade à Esperança, acabou com a predestinação e encerrou o reinado de um panteão de deuses manipuladores), em God of War, o protagonista inicia uma jornada com aspirações altruístas, apenas para acabar antecipando o Ragnarok (leia-se apocalipse) para o mundo nórdico. 

Excepcional em virtualmente todos os seus exercícios (não cheguei nem a mencionar o brilhantismo de seu sistema de combate, exploração e estruturação de mundo), God of War é um exemplo extraordinário de reinvenção de identidade: mantendo a escala grandiosa que viemos a esperar de um épico protagonizado por Kratos (contando com alguns dos momentos mais espetaculares da série neste quesito), o jogo a contrapõem com momentos ‘menores’ que nos permitem respirar aquele mundo e compreender cada um de seus habitantes.

E a verdade é que Cory Barlog e sua equipe apostam tão pesadamente nesta abordagem justamente por que compreendem que, para nos importarmos com o espetáculo, é necessário que nos importemos primeiramente com seus envolvidos.

Não surpreendentemente, em God of War, o resultado é um épico que transcende as próprias características do gênero.



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